23.1.13

ENTREVISTA:Sobre o casamento para todos - Com Jacques-Alain Miller


Sobre o casamento para todos

Com Jacques-Alain Miller
Lacan Cotidiano 267

O que  o levou a assinar o Manifesto do Nouvel Observateur (1), publicado hoje?
Não me antecipei. Assinei porque me pediram. Especificamente, Eric Aeschimann, que é jornalista de lá, e que passou por mim na  Escola Normal Superior na noite em que li  textos de Lacan no pátio. Fiquei surpreso com um pedido vindo daquelas bandas, pois aquele semanário sempre se mostrou hostil a Lacan, que lhe pagava  na mesma moeda, e também aos seus seguidores, que lidam com isso.
 Você era a favor, antes?
Minha ideia não era de modo nenhum engajar meu nome. É um assunto no qual as sensibilidades estão à flor da pele, dos dois lados, e não cabe a um analista pôr pimenta nas feridas. Aliás, a Escola da Causa Freudiana, como instituição, não debateu a questão e nem se posicionou. Contudo, propus ao Conselho de administração da Uforca (2) organizar as nossas Jornadas Anuais sobre o tema, nossas Jornadas clínicas.  Concordamos  com este título: « Quando os desejos se tornam direitos ». O cartaz já foi divulgado. O evento terá lugar em maio, na Mutualité, é aberto a todos e não reservado às Secções Clínicas.
O que o levou a aceitar se comprometer pessoalmente?
Fiquei cada vez mais irritado ao ver circular na mídia que «  os psicanalistas » estavam contra, e até mesmo que eles iam desfilar contra – li isso no Le Figaro. Acho que essa impressão deve muito ao ativismo do nosso colega Winter, que se propagou muito. Eu o conheci no tempo da Escola freudiana, era um analisante de Lacan, um autêntico. Ele empreendeu uma campanha com afinco, tanto no jornal L’Humanité como nos Études (3), a revista dos jesuítas, nós o vimos por toda parte. Achei que era forte demais meter a psicanálise assim, por conta da religião. Dito isso, Lacan já havia previsto que, com o desejo de Freud de salvar o pai, a Igreja acabaria por se dar conta de que ele lhe propiciaria argumentos. Pois bem, chegamos lá. E isso não me parece conforme à orientação lacaniana. É bem o seu oposto.
Então, você é sobretudo contra os contra ?
O momento de concluir chegou para mim da seguinte forma. Primeiro, em 20 de dezembro, assinei o texto de l’Obs. No dia seguinte, pedi a Clotilde Leguil o texto que Marianne lhe pedira para escrever sobre o assunto, muito bom artigo por sinal, e que ainda não foi publicado na revista(4). Naquele mesmo dia, vi que o papa tinha escrito uma matéria no Financial Times (5). Isso não acontece todos os dias. Fui ver no site. De lá, me remeteram ao Osservatore Romano (6). Cliquei, e pude ler em italiano a alocução do papa na Cúria, por ocasião do Natal. Ali, ele citava com fervor um opúsculo do Grão Rabino Bernheim (7), difundido na Internet. Reportei-me ao texto e vi que ele não se apoiava apenas na Bíblia para se opor ao casamento gay, mas também, em filigrana, em Freud e no Édipo. Os textos do papa e do rabino eram bem feitos, tomavam como ponto de partida o primeiro capítulo do Gênesistive vontade de responder. Daí, propus à minha correspondente no Le Point de escrever sobre o assunto. Até aquele momento, o jornal tinha sido muito discreto sobre essa questão, mas Giesbert deu sinal verde. Eu então redigi o texto publicado na semana passada.

E a partir daí, você vai continuar?
Claro. Não vou largar o osso. Redigi um segundo texto para o Le Point, que deveria sair na próxima semana. É sobre a teologia do casamento, a que está sendo elaborada atualmente, na linha aberta por João Paulo II.  Estou também em contato por e-mail com Di Caccia, que está muito bem informado sobre isso, que me deu referências muito úteis, e a quem mando meus textos antes de publicá-los.  Acho prodigioso o esforço intelectual feito pelo Vaticano na revista Communio, por exemplo, há anos, para dar à sexualidade o  lugar dela no dogma. Respeito imensamente, mas, ao mesmo tempo, me diverte ver como a interpretação é maleável a todos os sentidos, como dizia Lacan, para depois negar que aconteça assim numa análise. Nessa teologia renovada, vejo a um só tempo a incidência de Freud, e isso me agrada,  mas penso ser ainda mais necessário sublinhar como Lacan não se deteve na metáfora paterna, no Nome-do-Pai, tendo chegado à  pluralização dos « non-dupes errent » e à inexistência da relação sexual. Se levarmos isso a sério, podemos nos opor ao casamento gay por todo tipo de boas razões, por gosto, pelo dogma, pela tradição, porque é preciso « defender a sociedade », enunciado estudado como tal, por Foucault, ou para proteger as crianças, etc., mas não se pode fazê-lo em nome da psicanálise. É simples.

 Em sua opinião, todos os analistas deveriam assinar esse manifesto?
Não. Os analistas não são somente analistas. São também católicos, crentes, ateus, homossexuais, conservadores, progressistas, etc. Podem ser contra ou a favor, pensar que devem se engajar ou que ficariam muito visados, e que mais vale conservar o silêncio prudente de Conrad. Mas, como alunos de Lacan, eles não podem, a meu ver, se opor ao casamento gay em nome da psicanálise. Podem fazê-lo, claro, mas isso é incoerente, é um contrassenso, pelo menos como eu entendo Lacan. Minha ideia, já a disse em meu curso, é que os psicanalistas sempre estão atrasados com relação aos efeitos da análise. É evidente no caso de Freud. Isso não vale para Lacan, cuja lucidez tomou um jeito profético. Para nós, na Escola da Causa Freudiana, é verdade, mas nos esmeramos para não nos deixarmos distanciar demais.
A seu ver, a Escola tem algo de específico a fazer ?
As coisas andam rápido. Tudo vai tão rápido. O governo contava evidentemente que a questão passasse, senão às escondidas, pelo menos às pressas, sem debate, apoiando-se nas previsões que davam uma ampla maioria da opinião a favor. Por que não ? Só que as diretivas do Vaticano eram claríssimas: lutar contra. A hierarquia já havia combatido na Espanha e se lançou na França de modo refinado, num estilo que sempre me agradou: Não se precisa esperar para se jogar na batalha. Portanto, vamos provavelmente ter um debate à francesa sobre este tema. Gosto disso. E não há apenas o manifesto do Nouvel Observateur, há também B.H.L noLe Point que sai hoje (8). Ele se posiciona com brilho, valendo-se de anáforas. Isso não deve ter sido muito fácil para alguém cuja estratégia consiste em tratar a Igreja com deferência. Não nos esqueçamos de que ele defendeu Pio XII. Os contra, armados pelos melhores teólogos, têm respaldo. Num tal contexto, a psicanálise está em jogo no debate público. Para mim, “pessoalmente”, acho que o meu lugar junto a Lacan, aquele que ele me deu para a difusão do seu ensino, me põe no dever de objetar o uso da psicanálise para fins apologéticos a favor da rejeição do casamento gay. Para a Escola, depende. Ela tem escolha.

Qual é a escolha?
Ou dizer que não cabe a ela tomar posição enquanto instituição. A meu ver, essa é, ou será de fato, a posição de todos os grupos analíticos. E é verdade que tomar posição não seria simples. Seria preciso consultar o conjunto dos membros, embora, por e-mail, isso não seja impossível. Além disso, ainda não houve trabalho da Escola sobre o assunto.  Pensei que o Colóquio de maio o iniciaria. A outra opção, pelo contrário,  é dizer que a Escola, da qual Lacan foi o primeiro presidente e que se estabeleceu a partir do seu ensino, tem o dever de recusar a instrumentalização da psicanálise e de afirmar que nada na experiência psicanalítica autoriza a sacralizar a forma atual da família e a rejeitar, por motivos psicanalíticos, o projeto de lei a respeito do casamento para todos. Não é ser a favor, é recusar ser contra em nome da psicanálise. Na verdade, existe uma terceira opção: a Escola se declarar a favor.  Mas qual seria a maioria necessária para que a Escola pudesse falar em nome de seus membros sobre tal questão ? A maioria simples seria, a meu ver, insuficiente. Os 2/3 ? Quando nos lançamos contra a emenda Accoyer tivemos, numa Assembleia geral, a unanimidade menos uma voz. Acho que cabe ao Conselho da Escola estudar essas opções, mesmo se for para decidir não se mover. A posição “não estou aí pra ninguém”,  sempre tem seu charme para os analistas em grupo, mas, por vezes, ela é desaconselhada. Será que a Escola deve  ficar à parte no momento em que a psicanálise é o que está em jogo, e não o alvo, na “esfera pública”, como diz Habermas ? Por força de não ir à luta para defender o discurso analítico, um grupo arrisca sempre se tornar uma SAMCDA (+). A verdade é que não consigo deixar de  pensar que se a Escola escolhesse a opção 2, sem falar da 3, seria a única a fazê-lo, e isso é muito atraente. Uma tal tomada de posição repercutiria na opinião pública. Dir-se-ia: nós, os lacanianos ortodoxos, recusamos que se instrumentalize a psicanálise a fim de se opor ao projeto de lei sobre o casamento para todos.

A Direção da Escola, sob a iniciativa de Jean-Daniel Matet, decidiu inserir na programação das Jornadas da Escola, em 2 de fevereiro, uma mesa-redonda sobre o assunto, que reunirá Jean-Pierre Deffieux, Clotilde Leguil e Jean-Pierre Winter (9).
Ótimo começo! Teremos, portanto, um debate contraditório. Seria também interessante que Lacan Quotidien recolhesse as opiniões dos membros da Escola, a dos seus leitores em geral.

                                                                             Entrevista realizada por Anne Poumellec
                                                                                                Paris, o 10 de janeiro de 2013

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